segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

História de amor no Haiti (Eliane Brum)



Seis dias depois do terremoto, Roger continuava diante das ruínas do prédio onde estava sua mulher, Jeanette, em Porto Príncipe. Não é possível alcançar, só podemos tentar vestir a pele do homem diante do monte de pedras. Debaixo delas, está a mulher que ama. Para todos, morta. Para ele, viva. Roger grita o nome de Jeanette. Diante de tantas dezenas de milhares de mortes, seu drama era apenas mais um. Mas não existe mais um. Existe o mundo inteiro em cada um. A vida só faz sentido se o homem com os olhos vermelhos fixos nas pedras for ele e todos nós.

De repente, alguém ouve um barulho. Uma voz entre os escombros. “Ela está viva!”, grita Roger. Agora, há um pequeno buraco. O repórter da TV americana enfia por ele um microfone para falar com Jeanette. Ela não come há seis dias, não bebe água há seis dias, não se move há seis dias. Enterrada viva, há seis dias Jeanette respira com dificuldade na escuridão. Tem os dedos da mão quebrados, sente dor. Jeanette tem algo a dizer. O que ela diz? Ela manda um recado para Roger: “Eu te amo muito. Nunca se esqueça disso!”.

Roger pega o que parece ser um pedaço de ferro da estrutura do prédio e começa a cavar.
Fiquei tentando abarcar o que é cavar pedras com um pedaço de ferro, com as mãos, para retirar dali um amor. Acho que não cheguei nem perto. O que faz meu coração falhar uma batida, para além da tragédia, é o que Jeanette escolhe dizer a um minuto da morte. O que importa a ela registrar depois de seis dias soterrada, 144 horas, 8.640 minutos, cada um deles eterno. Tudo o que importa para Jeanette, que não sabe se vai sobreviver, é afirmar seu amor ao homem que ama. Diante da morte, esta era a frase de uma vida.

Este pequeno drama, um entre dezenas de milhares, explica por que, contra todas as catástrofes, a escravidão e os sucessivos abusos cometidos pelas potências de cada época, a exploração e a violência, as bolachas de lama, as tantas misérias, a falta de tudo, o Haiti vai sobreviver. Mesmo sem quase nada, Jeanette e seu povo ainda tem o que perder.

O que você diria se fosse Jeanette?

A história de Roger e Jeanette nos remete ao que dá sentido à vida. Ao que realmente importa para cada um de nós. Soterrada pelas ruínas do seu país, a haitiana Jeanette ensina o mundo inteiro. Não porque quer nos dar alguma lição, mas porque Jeanette é. Inteira, ainda que aos pedaços em meio aos cacos simbólicos e reais de um povo, de uma nação. Como repórter, já escutei sobreviventes das mais diversas tragédias, ou apenas diante da catástrofe inescapável que é o fim da nossa história quando a vida chega ao fim.

Ninguém sente saudades do momento em que teve seus 15 minutos de fama ou brilhou em algum palco ou ganhou um aumento de salário ou foi chefe de alguma coisa ou botou um peito turbinado ou emagreceu seis quilos ou comprou uma casa ou um carro zero ou uma TV de tela plana. Diante do momento-limite, somos levados não aos grandes bens ou aos grandes planos, mas aos detalhes cotidianos que em geral passam despercebidos, quase esquecidos em nossa pressa rumo às grandes aspirações. O que nos falta é aquilo que nos preenche a cada dia sem que nos demos conta. Aquilo para o qual, em geral, não temos tempo.

Será que é preciso quase morrer para lembrar de viver?

Nem sempre há uma segunda chance. Sem saber se teria uma, Jeanette nos lembra, com seu recado muito particular, daquilo que é universal. Seja você uma moradora do país mais pobre das Américas nos escombros de um terremoto, seja você um bombeiro de Los Angeles, como aqueles que tentavam resgatá-la, seja você uma brasileira que escreve sobre ela, como eu, ou um brasileiro que lê este texto, como você. Jeanette nos lembra que o que nos iguala em nossa condição humana é o que, de fato, faz diferença. Pelo buraco, ela nos lembra que a vida é sempre urgente.

A vida é para hoje, a vida é para já.

Depois de três horas, Jeanette foi arrancada dos escombros. Viva. Saiu de lá cantando uma música cuja letra dizia: “não tenha medo da morte”. Assim que emerge das ruínas, logo depois de receber os primeiros-socorros, Jeanette entra no carro de Roger e parte. Bem empoeirada, sem nenhum drama. Como se tivesse resvalado na calçada e machucado a mão num dia qualquer. E o marido lhe desse uma carona para casa. Como boa sobrevivente, Jeanette reinventa a normalidade.

De novo, Jeanette tem algo a nos ensinar. Ela sacode a poeira e parte rumo ao cotidiano porque a vida tem de continuar, a vida deve se impor. É possível seguir quando, mesmo nos sentindo aos pedaços, sabemos o que é essencial, o que realmente importa, o que faz nosso coração bater mais rápido. No caso de Jeanette, o seu amor por Roger. E, mesmo se Roger faltasse, acredito que Jeanette ainda assim deixaria as pedras para trás e partiria rumo a muitos recomeços, porque só ama o outro com esta inteireza quem ama muito a vida que é.

Jeanette nos ensina que mais triste que a morte é uma vida desperdiçada com aquilo que não importa.*

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Este ano começou com muitas tragédias, aqui e no Haiti. Acho que precisamos prestar atenção e aprender com elas. Não basta se comover com o sofrimento do povo haitiano. Nossa solidariedade não se resume aos que podem pegar um avião e ajudar no que for possível. Nem a angariar dinheiro, alimentos e medicamentos. Como mostra João Pereira Coutinho em sua coluna na Folha de S.Paulo de 19/01, as catástrofes se equilibram equitativamente pelo planeta. O que não é equitativo no globo são a renda e a democracia. Em 1989, um terremoto de 7,1 na escala Richter causou 67 mortes nos Estados Unidos. No Haiti, um terremoto com a mesma intensidade matou – oficialmente – 150 mil pessoas.

Um estudo citado por Coutinho, The Death Roll from Natural Disasters: the Role of Income, Geography and Institutions (A lista da morte por desastres naturais: o papel da renda, da geografia e das instituições), publicado por Matthew Kahn na revista do MIT, em 2005, prova que são a pobreza e a tirania – e não a natureza – que matam. Naquilo que é invenção humana, estamos todos implicados. E, no caso do Haiti, especialmente nós, que comandamos a Minustah, a missão da ONU que supostamente está lá para estabilizar e reconstruir o país.

A série de tragédias deste início do ano não é um prenúncio do apocalipse bíblico ou de alguma outra espécie de fim de mundo mítico. Se o terremoto mata tantos no Haiti – e a chuva aqui – é por conta das escolhas políticas, econômicas e éticas que fizemos. E não porque a natureza ou um Deus cruel está nos matando como uma espécie de vingança pelo mal que causamos ao planeta e a todas as outras espécies. Nosso estilo de vida é que está nos matando, começando pelas vítimas de sempre, os mais pobres. O mal que nos aniquila se origina no nosso livre arbítrio – e só pode ser revertido pela transformação de nossas prioridades. Ser solidário hoje, diante da tragédia, é mais do que chorar diante da TV. É passar a fazer escolhas mais responsáveis, começando dentro da nossa casa.

Chove em São Paulo enquanto escrevo esta coluna. Eu sempre adorei chuva. O barulho das gotas batendo na janela, o vento que sempre a acompanha, o cheiro de terra molhada. Agora, me sinto culpada por gostar. Assim que sou tomada pelo reflexo imediato do prazer, na hora vem a culpa. Porque a chuva que faz bem ao meu bairro de classe média mata alguém na parte mais pobre da cidade. Passo então a imaginar o tamanho do desamparo de uma mãe com seus filhos num barraco a cada vez que começa a chover. De olho no céu, de olho no barranco, sem poder proteger aqueles que ama. Visto a pele dessa mulher que tem medo da chuva que vejo pela janela.

Apenas na madrugada de quinta-feira (21/1) morreram nove pessoas na Grande São Paulo, a região mais rica do país. Porque choveu. A maioria delas soterradas, embaixo de lama. Já são 62 mortos desde o início de dezembro no estado de São Paulo. E são governantes escolhidos por nós que culpam a natureza, “as chuvas em excesso”, pela morte de gente, em pleno século 21, por causa da água que cai do céu. Ou usam a tecnologia para tuitar, como fez José Serra (PSDB): 2010 é “um ano anômalo” no que se refere à quantidade de chuvas. Ainda bem que temos um governador para nos avisar.

O prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab (DEM), diz que devemos ficar “tranquilos”. Não, senhor prefeito, eu não fico tranquila. E acho que o senhor não deveria ficar também. Se eu fosse o senhor ou um dos prefeitos que o antecederam, eu não dormiria à noite porque me sentiria responsável. E mesmo não sendo o senhor nem um de seus antecessores, eu durmo mal porque me sinto responsável. Por que enquanto tento dormir, bem perto de mim e do senhor muitos estão com medo de morrer – e alguns morrem. Por chuva.

Cada um de nós tem sua parcela de responsabilidade, não apenas porque somos responsáveis por quem elegemos com nosso voto, mas pela vida que levamos. As tragédias pelas quais choramos hoje foram causadas não apenas pelas nossas más escolhas no sentido mais amplo, como humanidade num recorte histórico, mas por aquelas que fazemos todo dia, como indivíduos, do excesso de consumo de bens, água e energia à produção e destino do lixo. O papelzinho amassado, a bituca de cigarro ou a garrafa pet jogados no chão pela janela do carro vão entupir o bueiro ou o córrego lá adiante que, sem dar vazão, vai matar a criança na periferia quando a terra desliza e desaba o barranco sobre o barraco.

Nossos erros – ou nossa ganância – estão sendo pagos pelos mais indefesos e frágeis entre nós. Aqui e no Haiti.Quando Jeanette me faz pensar sobre o que realmente importa na minha vida, reafirmo a certeza de que não importa apenas a minha vida. Minha vida só faz sentido, só se realiza, se tornar possível também a vida do outro. Lá. Aqui. Em qualquer lugar.

Fonte: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI117882-15230,00-HISTORIA+DE+AMOR+NO+HAITI.html

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